Além das aflições que impõe hoje à sociedade, que vive em estado de insegurança permanente, a pandemia do novo coronavírus está escrevendo a crônica de uma tragédia anunciada para os que se encontram na base da pirâmide social.
A prolongada interrupção das aulas ameaça o futuro de toda uma geração de crianças e adolescentes pobres, que têm na escolaridade a grande chance de obter empregos dignos, ganhar salários decentes e constituir famílias cujos filhos teriam perspectivas melhores do que as deles próprios.
Não é novidade que a escolaridade é a maior responsável pela redução das desigualdades. Embora programas de transferência de renda tenham tido peso relevante no Brasil, o alcance de tal política é limitado e dependente da manutenção do benefício por tempo indeterminado.
O acesso à educação, ao contrário, promove a independência financeira do cidadão, lhe dá condições de caminhar com as próprias pernas, abre novos horizontes profissionais. Essa expectativa, no entanto, pode estar sendo roubada pela ação do vírus e pela reação das autoridades.
É uma realidade que não escapa à percepção dos que sentem mais intensamente na pele as adversidades do momento. Em setembro, uma pesquisa realizada pelo Data Favela, parceria do Instituto Locomotiva com a Central Única das Favelas (Cufa), mostrou que três quartos dos moradores de comunidades têm “muito medo” de que seus filhos percam o ano letivo.
O temor tem fundamento. Sabe-se que o maior motivo da evasão de alunos nas escolas públicas é justamente a repetência. Muitos deles, premidos pela penúria e desmotivados, preferem ingressar prematuramente no mercado de trabalho, dedicando-se a atividades mal remuneradas, o que tende a perpetuar a miséria da família. Segundo a pesquisa, quase metade (47%) dos alunos residentes em favelas receiam que, em algum momento, possam vir a desistir dos estudos.
O quadro é crítico. Mais da metade dos estudantes desse universo (56%) disseram não ter assistido a aulas online desde o início da pandemia, como revelou a pesquisa do Data Favela.
As razões estão associadas à falta de condições materiais. Eles não têm computadores adequados (46%), não dispõem de acesso à internet (25%) ou não conseguem acesso às plataformas onde o conteúdo didático é oferecido (23%).
Quanto mais desfavorecida a família, mais dramática a posição do aluno. Nas camadas D e E, praticamente três quartos (73%) dependem exclusivamente do celular para ter acesso à internet. Para agravar a situação, eles em geral têm aparelhos com capacidade insuficiente de memória e processamento. Além disso, os pacotes de dados costumam ser limitados e o sinal da operadora de telefonia nem sempre é estável nas proximidades de onde moram.
Nesse cenário de desalento, falar em meritocracia, por exemplo, continuará sendo imoral e perverso. O critério, caro aos liberais, pressupõe igualdade de oportunidades, cujos resquícios a crise do coronavírus está aniquilando rapidamente.
Caso o problema não seja atacado com disposição, a atual conjuntura desoladora projetará sua sombra nas próximas décadas, com perda para todos, pois esgarçará nosso já frágil tecido social.
Renato Meirelles é presidente do Instituto Locomotiva e Celso Athayde é fundador da Central Única das Favelas.
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