Maria Alice Setubal (Neca), Doutora em psicologia da educação (PUC-SP), socióloga e presidente do conselho da Fundação Tide Setubal.
O retrocesso das políticas públicas, o desrespeito aos direitos humanos e o baixo crescimento econômico dos últimos anos se somaram aos efeitos da crise gerada pela pandemia de Covid-19. Ao contrário do que poderíamos imaginar, após um ano ainda estamos imersos em um cenário gravíssimo, com mais de 400 mil mortes no país, e um quadro dramático de aumento das desigualdades, com a fome presente na mesa de milhares de brasileiros.
A pesquisa O Brasileiro e a Solidariedade, realizada pela Locomotiva Pesquisa & Estratégia em 72 cidades e com 1.620 entrevistados, traz alguns dados que revelam o atual comportamento da sociedade brasileira. Em resposta à questão sobre qual tipo de atitude foi praticada durante a pandemia, 71% fizeram doação para pessoas físicas; 69%, para entidade/associação ou campanha; 43%, trabalho comunitário para associação ou entidade; e 30% divulgaram campanhas de prevenção e ou doação. Em paralelo, 86,3 milhões de brasileiros receberam algum tipo de doação durante a pandemia e 74% afirmaram que faltaria dinheiro para comprar comida se não fossem os donativos recebidos.
Sem dúvida, 2020 foi um ano de grande movimentação e articulações diversas, com um crescimento exponencial das doações, mas, em uma média apurada ao longo de dez anos, o Brasil ocupa o 74º lugar em um ranking de solidariedade com 140 países. Segundo a pesquisa Doação Brasil/Idis 2016, a prática da doação no Brasil tem como barreiras o desconhecimento sobre a atuação das organizações e a falta de confiança, a falta de noção sobre causas e sobre o poder de transformação e o fato de as pessoas acharem que quem doa não deve falar sobre isso.
Ao voltarmos à pesquisa O Brasileiro e a Solidariedade, 71% acreditam que vamos sair da pandemia mais generosos; 69%, que vamos sair mais preocupados com os outros; e 61%, que sairemos mais preocupados com o Brasil. Temos então, neste momento, o desafio da continuidade, que pode se tornar uma oportunidade se construída em bases fortes para uma ação coletiva.
O Movimento por uma Cultura de Doação, criado em 2012 e formado por fundações e institutos, lançou um manifesto em agosto de 2020 que destaca cinco diretrizes para que as doações se tornem um comportamento inserido no dia a dia da nossa sociedade: 1 – é preciso educar para a cultura de doação, uma educação para a generosidade; 2 – promover narrativas engajadoras —doar precisa virar assunto do dia a dia, conversa na hora do jantar; 3 – criar um ambiente favorável à doação —doar precisa ser fácil; 4 – fortalecer as organizações da sociedade civil —precisamos de uma sociedade civil fortalecida, plural e financeiramente sustentável; e 5 – fortalecer o ecossistema promotor da cultura de doação.
Responsabilizar-se pelo outro e pelos diferentes coletivos que nos rodeiam talvez seja um dos nossos maiores desafios para uma transformação cultural como sociedade. Olhar para o contexto social e agir não deveria ser visto como mérito ou escolha de alguns, mas como condição para que cada um de nós e a sociedade como um todo possam se desenvolver de uma forma mais justa e mais digna.
Essa deveria ser a bandeira de cada cidadão brasileiro consciente de que as desigualdades, a pobreza, o racismo e a insegurança não afetam apenas os mais vulneráveis, mas afeta a todos —e por isso somos, cada um no seu lugar e com as suas possibilidades, corresponsáveis pela sociedade que queremos ver para nossos filhos e netos.
O nosso papel é contribuir para que possamos eliminar a fome de tantos milhões de pessoas ao mesmo tempo que possamos olhá-las com o respeito e a dignidade que merecem. Tecer uma grande comunidade de solidariedade, não apenas para o agora, mas para esse desafio maior de construção de diálogos, pontes, convivência e responsabilização social para com o outro e para com o Brasil. É o que o século 21 e a história brasileira estão nos impondo.
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